ARTIGO: HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL

Aline Raunaimer de Oliveira[1]

RESUMO
Este artigo pretende analisar a Hermenêutica Constitucional, pontuando sua construção histórica e diferenciando-a das demais formas de interpretação do Direito. Esta ciência, conforme será constatada no decorrer do texto, ganhou força jurídica com o movimento neoconstitucionalista e procura apreciar a norma suprema de maneira ampla, abrangendo as mais variadas concepções e admitindo diversos métodos interpretativos. Através desta leitura, finalmente, será possível distinguir as formas de análises tradicionais e diferenciadas da Constituição, esclarecendo seus objetivos para que sejam adequadas ao caso concreto.

PALAVRAS-CHAVE: hermenêutica; interpretação constitucional; métodos interpretativos.    

INTRODUÇÃO
A finalidade do presente trabalho é traçar os fundamentos da hermenêutica constitucional, citando e elencando as novas formas de interpretação além de compará-las com os modelos utilizados em normas infraconstitucionais. A hermenêutica, tal qual ocorre com os direitos fundamentais, é construída de forma histórica, isto é, se aperfeiçoa com o passar do tempo e com as conquistas sociais. Porém, a partir do momento que os temas constitucionais entram em pauta é necessário cuidado redobrado tanto na análise quanto na forma de fazê-la.
Os métodos tradicionais e inovadores da hermenêutica constitucional, suas novas formas de interpretação, bem como o objetivo de cada uma delas são os elementos essenciais que irão compor este artigo, de caráter incisivo, porém vital para o preenchimento de lacunas comuns ao estudante de direito. 

A CONQUISTA MATERIAL DA HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
Desde o advento das primeiras Constituições escritas, já se sabe que a Carta maior do ordenamento jurídico possui supremacia sobre as demais normas infraconstitucionais. Porém este atributo, tão essencial para manter a segurança jurídica dos conteúdos presentes na forma de uma Constituição, não passa de um simples escalonamento mecânico se esta supremacia não for em um sentido material. Isto significa que os princípios constitucionais devem irradiar por todo ordenamento jurídico, sem exceção, vinculando não apenas as normas nele presentes como também a forma de aplicá-las por meio da figura do magistrado, que a partir da constitucionalização do ordenamento jurídico deixou de ser um mero operador do direito para se tornar um aplicador deste.
Como é de conhecimento geral, o Brasil é um país relativamente novo neste processo que constitucionalizou o direito. Esta carga axiológica material atuante na Carta suprema é presente no sistema jurídico brasileiro há pouco mais de 25 anos. Isto decorre, naturalmente, entre outros fatores, da complexidade das relações sociais crescentes no país que apresentam ao direito o desafio de procurar resoluções que não estão prontas nos extensos códigos da ordem jurídica, mas que devem ser analisados isoladamente para que se possa extrair uma solução sensata e fundamentada pelo judiciário através da argumentação. 
Obviamente, a Constituição é uma norma jurídica e por possuir esta qualidade se sujeita aos elementos de interpretação como qualquer outra. Estes, juntamente com o ato de subsunção do fato a norma, embora eficazes na maioria dos casos, são insuficientes ao se depararem com situações que possuam direitos igualmente tutelados constitucionalmente, mas que sejam contrários entre si no caso concreto. 
Esta nova interpretação jurídica mantém o magistrado diretamente ligado no processo de criação do direito, valorizando, conforme já exposto a argumentação jurídica. Ele deve mostrar racionalmente que a solução por ele proposta era a melhor aplicável àquele caso.
Esta conquista de espaço do Poder Judiciário passa por algumas dificuldades a serem superadas. Existem casos complicados, principalmente os que envolvem os temidos embates de direitos fundamentais e exigem soluções criativas por parte do magistrado. É a partir deste ponto que podemos identificar o fenômeno da pré-compreensão que afasta a ideia utópica de imparcialidade total do magistrado. A professora Jane Reis Gonçalves Pereira, de maneira muito singular, aponta eventos fora do universo jurídico que modificaram totalmente a crença absoluta no apartidarismo do judiciário nas relações hermenêuticas:

Foi o desenvolvimento da física quântica que fez ruir a pedra angular do positivismo filosófico, ao evidenciar a impossibilidade de observação “imparcial” do objeto científico. Os físicos Heisenberg e Bohr comprovaram que não é possível observar ou medir partículas sem as alterar, já que estas, uma vez submetidas ao processo de medição, modificam-se. Assim, o objeto, uma vez observado, já não é o mesmo. (PEREIRA, 2006, p.28).

Como se vê, o Direito é uma ciência, logo se pressupõe que as leis da física quântica aqui mencionadas, se aplicam à interpretação das normas e que, portanto não há imparcialidade total na participação do judiciário.
Essas novas formas de interpretação são necessárias para adequar a Constituição às atuais complexidades sociais sem alterar sua e essência e o fenômeno da pré-compreensão enquanto corolário destas deve ser ponderado, buscando na medida do possível um equilíbrio entre as pré-concepções do intérprete e a solução a ser aplicada no caso concreto, utilizando métodos hermenêuticos.
 A expressão hermenêutica deriva de Hermes, responsável pela interpretação das palavras dos deuses, traduzindo-as aos homens na mitologia grega. Tomando por base sua raiz morfológica, não é difícil imaginar o objetivo de estudo desta ciência.  A hermenêutica é uma espécie de tradução, uma explicação. Mas explicação do que? Da norma jurídica, ora. Pois muitas vezes o cidadão que a lê encontra sérias dificuldades para entendê-la. Veja por exemplo o código civil, que apesar de ser uma lei feita para reger a nosso dia-a-dia possui dispositivos bem complexos e expressões que transcendem o conhecimento costumeiro e por isso devem ser interpretados de maneira adequada. É exatamente por meio da hermenêutica que sabemos como entender as leis e quais são os métodos e princípios a serem utilizados no caso concreto.
Só que esta ciência aplicada ao direito possui uma subdivisão relativamente nova, a hermenêutica constitucional. Antigamente essa dicotomia não era pacífica, havia vários autores que estendiam os princípios e métodos hermenêuticos gerais para a Constituição sem a necessidade de utilizar novos critérios. Porém com o chamado neoconstitucionalismo isso mudou e hoje a grande maioria dos autores reconhece a hermenêutica constitucional de forma distinta da utilizada para normas infraconstitucionais.
Tratando da diferenciação em essência da Constituição em detrimento das demais normas do ordenamento jurídico e com a finalidade de concatenar as ideias do leitor não será exagero citar o professor Inocêncio Mártires Coelho com um trecho de sua obra Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais:

Concretamente, além de ser a lei básica do Estado (perspectiva jurídica), a Constituição é também a norma fundamental e conformadora da vida social (perspectiva sócio-política), em cujo âmbito se formulam fins sociais globais mais significativos, onde se fixam limites às tarefas da comunidade e onde, afinal se ordena o processo político como um todo. (COELHO, 2000, p.31).

No que tange às correntes da Hermenêutica Constitucional, temos duas posições: o interpretativismo e o não-interpretativismo. Enquanto a primeira considera que o intérprete deve ser limitado a aplicar apenas e tão somente o texto constitucional e princípios que estão claramente implícitos na Constituição, a segunda por sua vez, considera que o intérprete não só pode como deve buscar valores constitucionais como igualdade, fraternidade e justiça, fazendo com que a interpretação vá além da norma, além do código.  
Outra questão importantíssima ao abordar a hermenêutica, tanto constitucional quanto geral, é vontade a ser buscada. Ao interpretar uma norma, o aplicador deve buscar a vontade da lei, mens legis, ou do legislador, mens legislatoris? Estas vontades, embora não pareçam a priori, são distintas.
            O entendimento majoritário da doutrina é de que se deve buscar a vontade da lei, até porque, além de ser muito difícil identificar o intento do legislador tendo em vista uma pluralidade deles em nosso ordenamento, a norma consegue evoluir para novas realidades que nem o próprio legislador imaginava.
            A Hermenêutica Constitucional possui também várias técnicas de interpretação distintas das utilizadas no ordenamento jurídico geral. Quem esmiúça bem esse tema é o professor da Universidade de Coimbra José Gomes Canotilho, pois em sua obra encontramos muitos destes métodos interpretativos constitucionais. Em seu livro Direito Constitucional e Teoria da Constituição, o autor faz uma breve introdução sobre o que são esses métodos de interpretação constitucional diferenciados:

A questão do “método justo” em direito constitucional é um dos problemas mais controvertidos e difíceis da moderna doutrina juspublicística. No momento actual, poder-se-á dizer que a interpretação das normas constitucionais é um conjunto de métodos, desenvolvidos pela doutrina e pela jurisprudência com base em critérios ou premissas (filosóficas, metodológicas, epistemológicas) diferentes, mas, em geral, reciprocamente complementares. (CANOTILHO, 2002, p. 1194).

 O primeiro método apontado pelo professor é o hermenêutico jurídico clássico ou método Savigny, em que o intérprete irá usar os elementos tradicionais, seguramente já conhecidos pelo leitor, como o gramatical, o teleológico e o histórico e sistemático.
Ocorre que há outros métodos específicos de interpretação constitucional. Um deles, apontado por Canotilho é método tópico-problemático, em que o intérprete parte do problema para chegar à norma.
Há o método científico-espiritual, também apontado pelo professor português, que busca o espírito da Constituição, a vontade constitucional e o método normativo-estruturante no qual o intérprete deve buscar o real sentido da norma constitucional que não se confunde com o texto da Constitução.
O falecido jurista Konrad Hesse também aponta o método hermenêutico-concretizador. Neste, o intérprete não parte do problema para chegar na lei, ele parte de uma pré-compreensão da norma para depois fazer um círculo hermenêutico. Ou seja, ele vai do fato à norma, da norma ao fato até chegar em uma melhor interpretação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todos estes métodos aqui citados demonstram a complexidade da norma fundamental que por ser dotada de supremacia deve manter grande abstração de seus dispositivos e ampla abertura de interpretação, pois só assim esta Constituição poderá manter a sua vigência e eficácia formal e material por um longo período de tempo.
Em suma, essa necessidade de interpretar a constituição de maneira distinta das demais acarretou em maior segurança jurídica e dispersão de conflitos de direitos fundamentais por meio de uma harmonização constitucional em detrimento dos critérios de revogação usados por todo sistema jurídico restante, além de muitas outras contribuições ao direito brasileiro que apenas com o tempo nos será possível usufruir integralmente.

REFERÊNCIAS
PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação Constitucional e Direitos Fundamentais: Interpretação, epistemológica e crise de paradigmas. Rio de Janeiro, São Paulo, Recife: Renovar, 2006.
COELHO, Inocêncio Mártires. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais:  A Constituição como ordem fundamental e programas de ação que identifica uma ordem político-social e seu processo de realização. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1993.




[1] Acadêmica do Curso de Direito na Faculdade Dom Bosco.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

“Pivete”

Fichamento informativo “Pré-socráticos: físicos e sofistas”

Fichamento de comentário "Primeira lição sobre direito"